sábado, 2 de novembro de 2013

Plenitude sem fulminação




"Eu acredito que a poesia tenha sido uma vocação, embora não tenha sido uma vocação desenvolvida conscientemente ou intencionalmente. Minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. (...)" Carlos Drummond de Andrade


Todos nós, que temos um pezinho na literatura, elegemos nosso escritor preferido e invejamos sua habilidade com as palavras, seu dom para expressar tudo aquilo que nós sentimos, mas parecemos incapazes de exprimir em seu exato significado ou intensidade. E vez ou outra ficamos pensando maravilhados como é incrível ter esse poder da palavra e que ele é para poucos definitivamente. Daí vem aquela invejinha literária de ter essa maestria com nossa língua, que mais nos domina do que o inverso e vivemos reféns do indizível, pois a vida humana parece imensamente mais complexa do que nossa capacidade de dizê-la
Eu sou dessas e Drummond é minha referência, minha bíblia, minha voz, assim como Clarice Lispector é meu referencial de cumplicidade desse fluxo de consciência ininterrupto e caótico; eles me expressam e me mostram o mundo e com eles aprendi a ver a vida muito mais que somente pela linguagem, mas pela linguagem literária. Talvez aí tenha mandado um abraço para ser alguém ajustado no mundo, porque quando entendemos a poesia que há nas coisas, torna-se impossível viver em um mundo tão materialista como o nosso.
Mas e quando a literatura começa a nos constituir de tal forma que não basta ler seu livro de cabeceira e sentir seus sentimentos mais íntimos expressos com aquele lirismo que só nossos poetas são capazes? Acho que é nesse momento que começamos a entender as palavras de Drummond... nesse momento, em que vejo minha relação com o mundo assumir um lirismo visceral, começo a entender que não é uma questão de intenção, mas uma impossibilidade de seguir existindo sem escrever.
O primeiro texto que escrevi foi fruto de uma ida ao cinema da qual voltei com a mente em festa, com milhões de relações se estabelecendo e aquilo era rico demais, precisava expressá-lo minimamente... por sua intensidade é claro, mas muito mais por uma necessidade de "esvaziamento"... não é possível viver com essa festa de ideias: quando elas nascem, elas precisam se desenvolver e se materializar ou nunca mais dormiremos novamente.
Mas o fantástico da vida é que nenhuma relação fica estanque... simplesmente por vivermos tudo se fermenta dentro de nós, nossas reflexões nos modificam e a experiência individual e a compartilhada com o outro modificam nossa relação com as pessoas e com a vida.
E se a relação com a escrita começa por uma necessidade de expressão, ela passa a ser absolutamente visceral. De repente, é preciso escrever para viver, e é importante percebermos que a questão não é a compreensão nem o entendimento, pois esse é um estágio anterior ainda, em que escrevemos para organizar nossos pensamentos e nos expressarmos, pois é isso que as pessoas que tem uma boa relação com o "escrever" fazem.
E escrever por uma necessidade vital não é tão racional como objetivar o entendimento, é antes uma necessidade de alma, espírito, existência... é preciso escrever porque senão não vivo. Meu corpo vive, mas minha alma está ausente, sufocando e ela só se realiza e se encontra quando escrevemos. O quê? Não sei, não importa nem é controlado por nós.
Escrevemos o que está no mais íntimo de nosso ser e nós só descobrimos o que estava lá quando vem à tona e isso é tudo que importa. E o ponto aqui é que esse movimento não quer dizer que vamos entender o que se passa conosco ou nosso próprio espírito, afinal, que forma tomará isso que vem? Um conto, uma crônica, uma reflexão que podemos nós mesmos não entendermos ou que pode não dizer nada a respeito do que está na origem do texto que surge, mas é impossível viver sem fazê-lo.
Por isso, hoje entendi nosso Drummond, pois há dias estava absolutamente irriquieta e há pouco tempo percebi que tudo se resumia à urgência de escrever... mas não sabia o quê, já havia tido muitos temas, mas o tempo deles passou, não fazem mais sentido agora, perderam-se no tempo e hoje, em um estalo, esse texto surgiu e só por isso devo respeitá-lo e deixá-lo fluir, pois se há algo que aprendemos com nossos mestres é que a literatura que urge dentro de nós deve sair sem maiores questionamentos ou tentativas de entendê-la, ela trilha seu próprio caminho em nós e através de nós, tudo que podemos fazer é mergulhar de olhos fechados e peito aberto.