Calor.
Muito, muito calor, daqueles que amolecem o corpo ao ponto de nada ser
possível. Impossível levantar. Impossível ficar. Há vento. Sinto que há, mas
ele parece se dissolver em algum lugar entre a janela e meu corpo. Tudo que
fica é esse desespero por uma brisa que resista a esse curto caminho, que
chegue; e essa sensação, do corpo formigante das tantas gotas de suor.
Grudam
os cabelos, as roupas, o lençol debaixo da roupa, a própria garganta parece ir
grudando suas paredes, aprisionando a voz. Deito atravessada na cama, debaixo
do ventilador na persistente esperança do vento. A garganta termina de colar e
os pensamentos aceleram nessa espécie de prisão dos trópicos.
Olho
o ventilador, talvez numa tentativa débil de adormecer os sentidos.
Estou
mentindo. Criando uma narrativa e tentando fazer da vida esse exercício premeditado.
Houve algo premeditado: a urgência da escrita. Ela estava aqui dentro, em sua
existência imperativa, então passei a buscar.
Alguns
possíveis acidentes moraram na existência milagrosa do quase.
Difícil
demais olhar para a possível poesia da mancha que, discretamente, começa a
surgir na parede, pintando o tempo na frieza do concreto, e ver a pessoa ali, a
dois passos, na quase colisão,
esperando o olhar de quem chega, de quem anota “limpar mancha da parede” e
segue. Segue a pressa. Olha a chegada. Segue o caminho.
Eu
buscava, portanto. E havia o imenso calor. A roupa grudava e, pensando em quantas
horas mais faltariam para a vida ser possível novamente, o ventilador cresceu
para mim.
As
hélices giravam vertiginosamente em uma espécie de frenesi e de exaustão da
inutilidade daquele trabalho ininterrupto, que mais parecia não existir.
Não
vou dizer, nessa minha falácia narrativa, o que veio antes e o que veio depois,
mas sei que doeu. Olhei aquele girar ininterrupto, acelerado, quase desesperado
(nesse tremor dos ventiladores que parecem estar sempre à beira do colapso), e
me vi.
A
imagem dos meus pensamentos naquele frenesi circular imperceptível me rasgou,
me deu a imagem exata dos últimos dias – talvez anos – das tantas ideias em
polvorosa sumindo no ar sem serem sequer percebidas. Nem uma pequena parte da
profusão em que viveram. Apenas se dissolveu no ar, como se nunca tivesse existido.
Mas
a questão toda é que não foi a dor nem a hélice, nem seu girar...
Havia
uma luz. Ela parecia refletir na parede, em um espaço mínimo entre o suporte do
ventilador e as hélices, quase imperceptível. Olhei para trás e em volta,
impossível saber o que era, o que refletia. Talvez fosse a coisa mais simples
de todas, uma réstia de sol no teto. Mas como me conquistou aquela existência!
Aquela
luz entre hélices incessantes, hélices do mundo de quem busca chegar, que buscam
cumprir sua função no calor. Luz que só olhares que buscam – verbo tornado
intransitivo temporariamente (ou não)
– conseguem notar. Essa passagem... Essa luz descuidada com uma existência tão
mínima e, por isso, tão livre. Tão maior que esse peso daqueles que têm que
chegar.
Agora
ela se foi e já posso sentir o vento, o trabalho das hélices saiu do anonimato.
Mas que ideia bonita foi essa!
Havia
uma luz, alheia à agonia do trabalho incessante, mas, ao mesmo tempo, tão
ligada a ele. A mim, pareceu um quadro. Uma composição perfeita e idílica... Perfeita
porque descuidada, perfeita porque inesperada... E eu, preocupada e dolorida
demais com a imagem crucitante daquele girar incansável, me vejo vencida pelo
riso dessa grande lição “Olha só, tinha uma luz”.
Há
uma luz.